O ano era 1994 e Nathalia Fuga cursava a faculdade de veterinária. Aos 22 anos e nascida em São Paulo, ela morava em uma república em Espírito Santo do Pinhal, no interior do Estado. Em uma de suas voltas para a capital paulista, se sentiu confusa ao passar pelo primeiro pedágio da estrada. Isso porque, na mesma época, o Brasil passava por uma transição de moedas durante o Plano Real.
“Em um dia que precisei voltar para São Paulo eu não sabia como pagar o pedágio. Me lembro da confusão pois não tinha certeza sobre como calcular os novos valores. Era maluco pois o valor em URV não aumentava, mas a cotação mudava todos os dias”, relembra.
O que a veterinária e pedagoga cita é a mudança de moeda proposta pela equipe econômica do governo Itamar Franco.
A transição começou em março de 1994, com a criação da Unidade Real de Valor (URV), que no mesmo ano se tornaria o real. A URV funcionava como uma unidade de referência para a conversão dos preços enquanto a nova moeda não chegava de fato.
Criada pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, ela tinha paridade com o dólar e era calculada diariamente. Em 1º de março de 1993 começou custando CR$ 647,50 e terminou em 30 de junho a CR$ 2.750.
As famosas máquinas de remarcação de preços
Os grandes estoques de comida da família também marcaram a memória de Nathalia.
Antes do Plano Real, a ida ao supermercado era quase uma disputa olímpica.
Por conta da fragilidade da moeda nacional e da hiperinflação, as compras precisavam durar – o que fazia com que as famílias enchessem a dispensa para não sofrer tanto com o aumento repentino de preços.
Nos supermercados, as máquinas de remarcação de preços eram muito comuns.
“Ir para o mercado era quase um evento. Me lembro que comprávamos muito. Muitas latas de óleo, pacotes de arroz, produtos de limpeza. Era comum, por exemplo, encher dois carrinhos. Além de um armário só para enlatados, também tinha um apenas para produtos de limpeza e uma geladeira horizontal para bebidas e peças de queijo e presunto”, conta.
Então, o avô de Nathalia, que na época era dono de uma cantina de escola, também fazia compras grandes.
“Como os valores oscilavam muito, ele não podia ficar aumentando toda a hora o preço para as crianças. Assim, lembro que ele fazia uma tabela de valores com um canetão e atualizava duas vezes por ano. Mas acabava tendo que absorver esse preço do mercado estocando muita coisa”, conta.
Dos consórcios de TV até as filas nos postos de combustível
Quem também se recorda bem das mudanças de preços da época é o revisor de textos José Teixeira Neto. Cursando Filosofia na época, ele revisava textos acadêmicos. Com um Ford Escort a álcool e morando no bairro Cerqueira César, em São Paulo, ele conta que atravessava a cidade para abastecer em um posto de combustível no Ipiranga.
“Apenas porque ali cobravam um preço muito menor. Nem parava para considerar a qualidade daquele álcool. Isso para ilustrar a irracionalidade que marcava meu pensamento econômico da época. Juntando com a observação diária da correção monetária nos extratos bancários, que provocava incerteza, sentia que éramos cercados por um clima de baixa autoestima, só por isso, independentemente dos outros fatores da vida”, ressalta.
Além disso, outra prática comum da época eram os consórcios.
Como o parcelamento de compras quase não existia, essa era a alternativa de muitos para a aquisição de itens mais caros.
“Meu pai foi presidente de um clube e tinham muitos consórcios de automóveis. Porém, isso virou uma loucura, porque os preços das coisas subiam muito rapidamente. Me lembro que as pessoas não conseguiam tirar os carros depois. Mas os consórcios eram para tudo: desde TV até aparelhos de som”, relembra Nathalia.
Antes do Plano Real a inflação no auge
Para se ter uma ideia, a situação era tão grave no país que, nos oito anos anteriores ao Plano Real, o Brasil teve quatro moedas e chegou a registrar, de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), um aumento anual de quase 2.500%. Antes disso, alguns planos econômicos foram implementados e fracassaram: Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor 1 e Plano Collor 2.
Além dos corredores dos supermercados e postos de gasolina cheios, a situação econômico-financeira da época trouxe peculiaridades na dinâmica de trabalho de Julio Cesar Ary.
O tecnólogo em gestão empresarial nasceu e foi criado em Fortaleza, no Ceará. Ele dedicou a maior parte da vida profissional como empresário na área de sinalização e segurança viária.
Ele conta que, como os contratos de sua empresa eram, geralmente, com órgãos públicos, havia o problema de consideráveis atrasos nos pagamentos das obras e fornecimentos para o governo.
“Existia então o ‘bom senso’ dos funcionários públicos no sentido de segurar as medições realizadas e só implantá-las quando a verba destinada ao pagamento chegasse aos cofres do órgão. Se essa prática não existisse, seria impossível a continuidade dos contratos públicos e a consequente bancarrota das empresas, pois a longa espera ‘derreteria’ o valor do dinheiro”, conta.
Ele relembra que, prestes a completar 30 anos de idade, não tinha mais esperança de estabilização econômica no Brasil.
Quando tudo começou a mudar
Foi neste contexto que, no dia 1º de julho de 1994, a entrada em circulação do real mudou o cenário de inflação no país. José Teixeira Neto conta que se sentiu esperançoso ao presenciar esse processo da URV sendo progressivamente implantada até transformar-se em real.
“Foi motivo de orgulho testemunhar que nós, como povo, havíamos conseguido um feito da história econômica mundial — e sem recorrer a tabelamentos. Porque todo o processo não foi plenamente compreendido pela maioria das pessoas. Até pareceu mágica, milagre, para mim também”, conta. Na visão dele, a surpresa inicial em torno do plano, seguida da observação, nas semanas e meses seguintes, do sucesso que obteve, trouxe orgulho e a sensação de que era possível planejar um futuro melhor para o país.
Assim, essa visão também foi compartilhada por Julio.
“A inflação começou a despencar imediatamente, ficando abaixo de 7% após um mês da implantação do plano. O Brasil ganhara finalmente uma moeda estável”, conta. A partir dali ele sentiu a vida melhorar.
Quem também viu uma mudança foi a administradora Luciana Castro Maciel, que tinha 16 anos na época do Plano Real.
A manutenção constante de preços e a necessidade de grandes estoques na dispensa marcaram a história da sua família.
“Lembro claramente do momento de lançamento da nova moeda e das explicações de conversão de um URV em um real”, conta.
Depois do Plano Real, de acordo com ela, a dinâmica de compra mudou, com um consumo voltado para a semana. “Entre os anos 1994 e 2014, vivi tempos de prosperidade e conquistas de objetivos como a conclusão de faculdade e pós-graduação e a compra de um apartamento popular, mesmo tendo passado pela crise de 2008, do dólar”, conta.
Por outro lado, José não notou uma mudança tão expressiva na qualidade de vida da sua família no período seguinte à adoção do novo meio corrente. “Mas ouvi muitos casos de pessoas de classe média baixa que melhoraram sua condição econômica. Gostei de voltarmos a usar moedas metálicas, que não se desgastam, ao contrário do papel-moeda. E até as de um centavo eram consideradas e guardadas”.
Plano Real: um divisor de águas?
José afirma que sua condição econômica hoje é pior do que há trinta anos, e até do que há dez anos. “Fico pensando como tudo estaria ainda pior se, além de tudo, ainda tivéssemos de lidar com uma inflação alta e descontrolada”, analisa.
Nathalia, que percebeu melhora nas condições financeiras de sua família com o Plano Real, conta que o poder de compra dos pais, por exemplo, é menor hoje em dia do que na época de estabilização do real. “Ao contrário dos meus pais (que são funcionários públicos), eu e meu marido trabalhamos na iniciativa privada, então o dinheiro oscila mais. Mas acredito que o poder de compra diminuiu”.
Já na vida de Júlio, o Plano Real foi um divisor de águas.
“Literalmente divisor, pois exatamente a metade da minha vida fora assolada pelos constantes reajustes de preços e cinco moedas diferentes, e a outra metade com uma moeda forte e uma inflação equiparada aos países de primeiro mundo. Resta agora acreditar que viverei para ver o Brasil no patamar de um país com estabilidade e crescimento econômico sustentável”.