O presidente argentino, Javier Milei, deu mostras na quarta-feira, 27 de dezembro, de que pretende apostar todas as fichas de seu governo na estratégia de concentrar o poder no Executivo e tomar medidas duras já na largada, sem dar ouvidos às críticas da oposição no Congresso Nacional nem atenção à reação popular.
Em meio a um protesto organizado por centrais sindicais que reuniu cerca de 20 mil pessoas em Buenos Aires – o terceiro e maior desde a posse do novo presidente argentino, há apenas 18 dias -, Milei enviou ao Congresso na tarde de quarta-feira um projeto de lei denominado Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos que prevê a decretação de emergência pública até dezembro de 2025.
O pacotaço, com 664 artigos e 183 páginas, inclui uma ampla reforma do Estado, alterações nas legislações eleitoral e penal, impõe limites a manifestações políticas com piquetes e prevê medidas para avançar na desregulamentação da economia.
Aguardado há dias e batizado de Lei Ônibus, o pacote é o terceiro baixado por Milei. No segundo dia de governo, o ministro da Economia, Luis Caputo, anunciou dez medidas de emergência, incluindo a desvalorização do peso em mais de 50% e a liberação de preços tabelados.
Na semana passada, Milei publicou o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), que visa desregulamentar a economia, alterando 366 leis.
“Tanto o DNU como esse projeto de lei são iniciativas muito ambiciosas”, afirma ao NeoFeed o economista Nicolás Alonzo, analista-chefe da consultoria Orlando Ferreres e Asociados, de Buenos Aires.
“Não estamos acostumados com uma visão tão reformista, e acho que o Congresso também não”, emenda, com ironia, sinalizando as dificuldades que Milei terá para aprovar o pacote no Congresso.
O partido de Milei, o Liberdade Avança, tem apenas 38 cadeiras na Câmara dos Deputados e 7 no Senado — o que representa 15% de todo o Congresso.
Intervenção
Eleito com um discurso ultraliberal, o novo presidente argentino vem defendendo a ideia de que apenas o presidente encarna a vontade popular.
“Milei aspira a uma significativa concentração de poder para desregulamentar a economia, gerir os ativos do Estado, reformular o sistema eleitoral como uma página em branco, modificar as taxas de impostos, enfrentar os protestos com uma dureza nunca conhecida na democracia e intervir em inúmeras aspectos da vida cotidiana dos argentinos”, adverte o jornal La Nacion.
Alguns artigos da Lei Ônibus, por exemplo, eram esperados, mas chama a atenção a ambição de Milei em tomar para si o poder de reformar o Estado argentino, deixando o Congresso de fora.
No seu Capítulo II do Título I, por exemplo, o texto declara “a emergência pública em matéria econômica, financeira, fiscal, previdenciária, de segurança, de defesa, tarifária, energética, de saúde, administrativa e social até 31 de dezembro de 2025” e estabelece que “o referido prazo poderá ser prorrogado pelo Poder Executivo nacional pelo prazo máximo de dois anos”.
O texto dá ao Executivo poder de “intervir em todos os órgãos e entidades descentralizadas que integram a Administração Pública nacional, com exceção das universidades nacionais”.
Os funcionários públicos que trabalham em entidades eliminadas ficarão à disposição por um período máximo de doze meses, durante o qual poderão ser treinados para realizar outras tarefas.
No Capítulo II, o projeto declara que “as empresas e sociedades de propriedade total ou majoritária do Estado” estão “sujeitas à privatização”. Na mira, estão 41 estatais, incluindo a petrolífera YPF, a Aerolíneas Argentinas, o Banco Nación, a Casa de Moeda, a empresa de águas AYSA, a agência de notícias Télam e estatal de trens, Ferrocarriles Argentinos.
Em matéria penal, a lei geral introduz diversas alterações. Por um lado, aumenta a pena de participação em piquetes em até 3 anos e 6 meses de prisão. Para líderes piqueteros que obriguem terceiros a participar de protestos, a pena pode chegar a seis anos.
Em outros artigos, que deverão levantar polêmica no Congresso, a Lei Ônibus altera a composição da Câmara dos Deputados e introduz alterações no financiamento dos partidos políticos. As eleições prévias foram eliminadas.
Na prática, o projeto prevê a adoção do sistema distrital para eleger os deputados. “Cada distrito será dividido em um número de circunscrições eleitorais igual ao número de deputados eleitos. Cada eleitor votará apenas em uma lista composta por um candidato titular e um suplente, que deverão ser de gêneros diferentes”, diz o texto.
O economista Alonzo diz que os dois pacotes apresentados por Milei reforçam a opção do presidente argentino de apostar em medidas duras no começo de governo. “Trata-se de uma estratégia muito ofensiva, isso é certo”, diz.
Segundo ele, o primeiro decreto (DNU) tem muitas leis que revogam coisas irrelevantes, mas a os artigos referentes ao mercado de trabalho e comércio exterior têm bastante substância.
“Em relação ao novo pacote de leis, do ponto de vista econômico, quase todas as medidas haviam sido apresentadas pelo Luis Caputo, então não há muitas novidades, mas são modificações bastante perturbadoras”, acrescentou.
Alonzo acredita que ao apresentar as medidas de uma vez, o objetivo de Milei é facilitar a discussão no Congresso. “O projeto de lei pode ser aprovado ou rejeitado por partes”, diz. O DNU, porém, por ser um decreto, precisa ser aprovado ou rejeitado na sua totalidade pelas duas casas legislativas.
A missão do presidente argentino é delicada. Em suas primeiras medidas, liberou o câmbio, cortou subsídios, o que elevou preços dos combustíveis em mais de 60% e de muitos produtos de primeira necessidade em 100%, em meio a uma inflação de 150% ao ano.
Tensão com Congresso
Numa mostra de sua estratégia agressiva no começo de governo, Milei enviou o pacotaço ao Congresso um dia após se envolver numa polêmica com os parlamentares da oposição.
Numa entrevista a uma emissora de TV na noite de terça, 26, ao comentar a resistência da oposição na Câmara dos Deputados em aprovar o decreto inicial (DNU), Milei ameaçou convocar um plebiscito caso o Congresso rejeitasse sua aprovação.
“Eles não conseguem aceitar que perderam, que o povo escolheu outra coisa”, disse Milei, acusando parlamentares da oposição de “buscarem subornos” para aprovar o decreto. “Esse DNU é voltado para os corruptos. Há muitos bandidos e criminosos por aí”, emendou.
A ameaça de convocar um plebiscito foi inócua: a legislação argentina prevê que os plebiscitos não são vinculantes, ou seja, a proposta precisa ser aprovada pelo Legislativo, independentemente do resultado da consulta. Com isso, Milei terá de negociar com a “casta”, como se refere aos políticos argentinos, para que suas medidas saiam do papel.
Por outro lado, os protestos populares recorrentes em seu início de mandato confirmaram as previsões feitas ao NeoFeed pelo economista Fabio Giambiagi, do FGV Ibre, no dia seguinte à posse, de que a lua de mel de Milei com os argentinos ia durar apenas alguns dias.