LONDRES — No alfabeto kanji, “kawaii” significa “a possibilidade do amor”. No mundo contemporâneo, “kawaii” é a “cultura do fofo”. Nascido nos anos 1960, o movimento se opunha à austeridade do modo de vida no Japão, durante a reconstrução econômica do país, depois da Segunda Guerra Mundial. O culto à meiguice, porém, só chegaria ao mainstream, em anos mais recentes, impulsionada pela revolução digital.
Sinal inconteste do alcance da tendência é a exposição Cute, na Somerset House, em Londres. Em exibição até 14 de abril, a mostra tem como destaque a personagem Hello Kitty. Laço vermelho na orelha esquerda, a gatinha antropomórfica chega aos 50 anos como símbolo máximo do kawaii e um fenômeno do marketing global.
“Nossa intenção era apresentar a figura mais importante do mundo em termos de fofura”, diz Claire Catterall, curadora da exposição, em entrevista ao NeoFeed. “Criamos uma discoteca para Hello Kitty, um espaço imponente e supersaturado, justamente para transmitir a ideia de como a fofura é uma força visceral e poderosa no mundo de hoje.”
Inspirada no gato Kitten de Alice, a célebre personagem de Lewis Carroll (1832-1898), Hello Kitty nasceu em 1 º de novembro de 1974. Foi criada para a empresa Sanrio, pela designer japonesa Yuko Shimizu, hoje, com 77 anos.
Desde então, a gatinha se transformou na figura mais bem-sucedida da companhia fundada por Shintaro Tsuji, em 1960. Avaliada atualmente em US$ 4,7 bilhões, desde o início do ano, a empresa registrou um aumento de cerca de 54% em suas ações.
A valorização dos papéis da Sanrio é explicado, em grande parte, pelos lançamentos e eventos em comemoração ao meio século de vida da personagem.
Hello Kitty é a segunda franquia de mídia mais valiosa do mundo. Com US$ 84,5 bilhões em vendas vitalícias de varejo, segundo a consultoria britânica SafeBettingsSites, só perde para Pokémon, deixando para trás Universo Cinematográfico Marvel, Star Wars, Ursinho Pooh e Mickey Mouse, entre outros.
Gata eclética
“Embora a Hello Kitty pertença à estética japonesa de ‘kawaii’, sua aparência e personalidade possuem uma versatilidade que atrai pessoas de todas as idades e culturas”, conta ao NeoFeed Monica Joseph, gerente comercial e de marketing da Sanrio no Brasil. “Colaborações com marcas renomadas, produtos diversificados e campanhas criativas aumentaram a visibilidade da personagem.”
É essa justamente a “genialidade” do marketing da empresa japonesa, como defende a antropóloga Christine Yano, da Universidade do Havaí, nos Estados Unidos, no livro Pink Globalization: Hello Kitty’s Trek across the Pacific (“Globalização Rosa: A Jornada da Hello Kitty pelo Pacífico”, em tradução livre): contratos de licenciamento em diferentes nichos do mercado consumidor.
Atualmente, a Sanrio tem cerca 20 mil produtos licenciados, comercializados em 130 países, aproximadamente. “No Brasil, em 2023, o número de contratos ativos cresceu 35%. Uma centena de empresas estampou as marcas da empresa em cerca de 20 milhões de produtos vendidos”, completa Monica, sem revelar valores específicos. E a gata é o carro-chefe de todo esse movimento.
Hello Kitty é eclética. Já apareceu de peças da joalheria de luxo Swarovski a biscoito para cachorros, passando por itens de papelaria, roupas, objetos de decoração, eletrodomésticos, comida (para humanos)… e até teses acadêmicas.
Agora, por causa de seu aniversário, a presença da personagem está ainda mais massiva. No Brasil, foi montada a exposição imersiva Hello Kitty: 50 Anos de Encanto e Magia, no Shopping Vila Olímpia, em São Paulo.
A Cia Beauty acaba de levar ao mercado uma linha de produtos de beleza e skincare em uma cobranding entre a apresentadora e empresária Sabrina Sato e a Sanrio. Na parceria, a Hello Kitty ganhou uma pinta na testa como a da famosa. A editora Painini lançou um álbum de figurinhas e estão previstas três corridas temáticas.
Aplicativos e games também apostam em novidades. Já está disponível um filtro da Hello Kitty no TikTok, com as orelhas, os bigodes e o lacinho. O perfil da gatinha na rede social também ganhou novos curtas de animação.
Está para ser apresentado um aplicativo de realidade aumentada, no qual o fã poderá interagir com a personagem em cenários de Tóquio, Londres, Nova York, Paris e Taipei.
E, para deixar sua presença online cada vez mais forte, a Sanrio investiu em site oficial, perfis em redes sociais e aplicativos. Só a conta oficial da Hello Kitty no Instagram tem 3,8 milhões de seguidores.
Como indica seu cartaz, a exposição “Cute” investiga o impacto da cultura da fofura na fofura na sociedade contemporânea (Crédito: Reprodução somersethouse.org.uk)
Em comemoração aos 50 anos da Hello Kitty, a Cia Beauty lançou uma série de produtos de beleza e skincare em parceria com Sabrina Sato e a Sanrio (Crédito: Divulgação)
Hello Kitty foi parar até nos muros do Beco do Batman, a galeria de grafites a céu aberto, em São Paulo (Crédito: Divulgação)
Outra empresa a lançar produtos comemorativos foi a Casio (Crédito: Reprodução casio.com)
A coleção de inverno 2024, do italiano Giuliano Calza, foi inspirada na personagem da Sanrio (Crédito: Reprodução gcds.com)
Um dos estilistas a investir na estética kawaii foi Marc Jacobs, com sua marca Heaven (Crédito: Reprodução marcjacobs.com)
Outras comemorações incluem ainda o relógio Casio e as camisetas, pijamas e bolsas, entre outros produtos da gigante irlandesa Primark. Os coolers e os calçados das americanas Igloo e Crocs, respectivamente; o jogo de simulação do Apple Arcade… e por aí vão os licenciamentos comemorativos.
O estilista italiano Giuliano Calza, da GCDS, fez sua homenagem na última Semana de Moda de Milão. Ele recorreu às recordações de infância passada na China, para criar sua coleção de inverno 2024, a Toys for Adults.
Ele levou para as passarelas saias, vestidos, tops, hot pants e smokings, estampados, bordados e costurados com a figura de Hello Kitty.
“Ao longo dos anos, a marca estabeleceu uma forte conexão emocional com seus fãs, trazendo sentimentos de nostalgia, felicidade e conforto”, diz Monica.
Alívio para as pressões do cotidiano
Em Londres, além do fenômeno da gata do laço vermelho, a exposição na Somerset House explora a ascensão da cultura kawaii frente aos avanços tecnológicos da internet.
Enquanto, no século 20, o conceito se limitava a brinquedos, bibelôs, roupas e itens de papelaria. Hoje sua estética impacta diuturnamente a sociedade contemporânea no domínio online.
“A internet é o motor da fofura e a razão pela qual ela conseguiu colonizar o nosso mundo no século 21”, conta a curadora Claire, referindo-se aos memes, emojis, filtros, tutoriais de moda e de maquiagem, videogames e sites, com imagens de criaturas meigas, inocentes, tímidas e infantis.
E ela completa: “O conceito de fofura é o que nos permite viver na esfera digital. Que funciona como um contrapeso à negatividade e à mordacidade, promovendo a bondade, o conforto e a amizade, um alívio necessário diante das pressões da vida cotidiana”.
No TikTok, as hashtags #kawaii e #cute somam, respectivamente, 5,1 milhões e 67,2 milhões de publicações. No rastro do digital, sem perder tempo, várias marcas aderiram aos negócios da meiguice. Alguns acadêmicos falam até em um certo “capitalismo kawaii”.
Em 2020, por exemplo, o designer nova-iorquino Marc Jacobs criou a Heaven, sua “marca fofa”.
A exposição londrina traz uma referência curiosa ao físico e cientista da computação britânico Tim Berners-Lee, criador do World Wide Web, a rede mundial de computadores.
Em 2014, ao ser instigado a citar um uso da internet que ele não havia previsto, respondeu, sem hesitação: “gatinhos”.