O nome completo é Viatina-19 FIV Mara Móveis. O final parece naming right de estádio, mas não. “Mara Móveis” é a fazenda goiana onde essa vaca nasceu, cinco anos atrás. E o “19” indica que ela faz parte de uma linhagem. Suas dezenas de irmãs, tias e primas também se chamam Viatina. Idem para a mãe, Viatina-3, e para a avó, matriarca da casta e primeira a carregar esse nome.
Só que a parte mais importante do RG da Nelore é outra: aquele “FIV”. Essa parece sigla de fundo de investimento. E faria sentido se fosse, já que Viatina-19 é a vaca mais cara do mundo; uma empresa de quatro patas com valor de mercado em R$ 21 milhões e faturamento anual de R$ 11,5 milhões. Só que FIV é outra coisa, claro. Significa “fertilização in vitro”.
E as cifras que o animal proporciona aos criadores só existem por conta dessa tecnologia, a mesma que, entre humanos, está por trás do congelamento de óvulos. Hora de entender melhor essa história toda – principalmente para quem é menos familiarizado com o agro.
Darwin explica
Desde a aurora da civilização criar gado é, necessariamente, buscar aprimoramento genético. Coloque os melhores exemplares para se multiplicar e, conforme as gerações vão passando, você terá animais que produzem mais leite, mais filhotes, mais carne marmorizada; seja lá o que você, criador, esteja interessado. Seleção artificial.
E a grande ferramenta de seleção artificial sempre foi a seguinte: os melhores machos, em detrimento das melhores fêmeas. Por uma questão matemática. Eles produzem uma quantidade virtualmente infinita de espermatozoides. Tenha um bom touro, coloque só ele para se reproduzir e… boom. O bicho vai espalhar seus bons genes vorazmente. O touro Landau, pai de Viatina, já tinha 15 mil filhos antes de sua cria mais famosa nascer. Backup, o mais prolífico entre os touros brasileiros, deixou 460 mil.
Já uma boa vaca é diferente. Ela produz um único bezerro por ano – são nove meses de gestação para cada um, tal como o Homo sapiens. E isso uma vida reprodutiva que não dura muito mais do que uma década. Em condições naturais, então uma vaca reprodutora vai deixar 10 ou 12 filhos.
Mas isso mudou com a chegada da fertilização in vitro em escala comercial, no início dos anos 2000.
In vitro
Grosso modo, você colhe óvulos da vaca com uma agulha transvaginal – num processo chamado de aspiração. Então leva para o laboratório, mistura com espermatozoides de um bom touro e gera embriões. Insira os embriões em outras vacas e pronto. Elas darão à luz bezerros com genes de uma vaca premium e de um touro idem.
Dá para fazer uma aspiração a cada duas ou três semanas. Cada uma pode render 70, 80 óvulos, que serão fertilizados. Daí, é possível que vinguem 10, 12 embriões, que irão para uma dúzia de barrigas de aluguel – “prenhezes”, no jargão agro, ou seja, diversos bezerros de uma única fêmea no útero de várias outras. Assim, uma vaca premium passa a gerar a cada três semanas a quantidade de filhos que teria em uma vida.
Isso já valoriza o animal, claro. Mas não só.
Também entra na jogada a expectativa de quem compra. O criador vende prenhezes e aspirações de óvulos de suas vacas campeãs. Quem adquire, deseja não só um gado de melhor qualidade. Também espera que algumas das crias se tornem vacas de genética cobiçada no mercado, já que aí terão como lucrar vendendo eles mesmos as aspirações de óvulos e prenhezes. A própria Viatina-19 foi concebida num tubo de ensaio – daí o “FIV” do nome completo. Sua mãe biológica, Viatina-3, idem.
Os acertos do passado, a começar pelas próprias Viatinas, ampliam as expectativas para o futuro. E os preços vão subindo. “A gente já vendeu uma única aspiração da Viatina por R$ 1,5 milhão”, diz Fabiana Marques Borelli, diretora da Casa Branca Agropastoril, uma das fazendas proprietárias do animal.
“Uma das” porque a propriedade de Viatina é fracionada. Em 2022, a Casa Branca e outra fazenda, a Agropecuária Napemo, compraram cada uma 50% da vaca, junto à Mara Móveis. Pagaram um total de R$ 8 milhões.
Um ano depois, a dupla de criadores leiloou 33% de Viatina. A fazenda Nelore HRO arrematou essa fatia por R$ 7 milhões. Ou seja, o valor de mercado dela foi a R$ 21 milhões – o que colocou Viatina-19 no Guiness Book, como a vaca mais cara do mundo.
Ela chegou a esse preço porque nasceu com características genéticas importantes para a seleção artificial da raça Nelore. São vários detalhes. “Você não quer, por exemplo, um animal que tenha um umbigo muito comprido. Num pasto alto, isso causa irritação. E você pode ter problemas”, diz Fabiana Borelli. Viatina, claro, tem o umbigo na altura ideal – tudo nela, enfim, é ideal. Daí a demanda por seus genes.
E mesmo assim o caso dela não é algo totalmente fora da curva. Donna, a segunda vaca mais cara da Casa Branca, vale R$ 15,5 milhões (também em sistema de co-propriedade, nesse caso com as fazendas Chácara Mata Velha e Agropecuária LMC).
São cifras bem mais altas que as dos touros. O mais valorizado do Brasil é o nelore REM Caballero – R$ 4,6 milhões. Essa diferença rola por dois motivos, que vamos ver a seguir.
A lógica favorável aos óvulos
Primeiro: a importância especial da fêmea na criação de gado. “Se ela não cria bem o bezerro, ele já está comprometido. A valorização das fêmeas leva isso em conta”, diz Borelli.
Para criar bem sua prole a vaca precisa de atributos óbvios, como produzir bastante leite. E de certas características comportamentais – que também são transmitidas geneticamente. A começar pelo instinto de acolher bem o bezerro, pois há vacas que rejeitam.
O segundo motivo da valorização maior das fêmeas é a oferta. A fertilização in vitro criou um novo mercado, ao multiplicar o potencial reprodutivo das vacas premiadas. Mesmo assim, a demanda pelo serviço é bem maior do que a oferta.
A lógica é simples. Um touro premium que gera 50 mil filhos não vai ter todos eles com vacas de primeira linha, posto que elas são raras. Já uma vaca premium que, graças à FIV, tenha centenas de rebentos ao longo da vida, produzirá todos a partir do esperma de touros campeões. Fabiana Borelli resume: “Você pode ter um touro excelente, mas se usar o esperma dele numa vaca ruim, não terá necessariamente um produto bom”.
É isso: a fertilização in vitro multiplica exponencialmente os “produtos bons”. Como espermatozoides de touros de primeira são um um recurso abundante, a variável que faz a diferença é a oferta de óvulos de vacas premium, um recurso escasso. É como a diferença entre ouro e prata: o recurso mais raro sai mais caro.
Os próprios criadores buscam assegurar o fator raridade. Fazem como a Ferrari ou a Porsche. As montadoras de supercarros poderiam fazer mais unidades se quisessem, mas seguram a rédea na quantidade que sai das fábricas para manter a mística – e os preços – sempre lá no alto. No mercado de genética bovina é basicamente a mesma coisa. “Precisamos controlar a oferta, porque obviamente queremos manter essa genética com a gente”, diz Fabiana Borelli.
Por conta disso, Viatina-19 tem relativamente poucas filhas espalhadas por aí: 30. Mais do que as que poderia ter produzido sem a fertilização in vitro, mas ainda assim bem menos do que se ela fosse aspirada todo mês.
Também há o cuidado de não desgastar o sistema reprodutivo do animal. “As aspirações perfuram o ovário. Isso produz alguma lesão. Ela pode ser maior ou menor, mas produz”, diz o médico veterinário Maurício Peixer, um dos pioneiros da fertilização in vitro de bovinos no país.
Dependendo do caso, uma vaca que passe por aspirações frequentes pode acabar com a vida reprodutiva abreviada. Peixer, inclusive, faz parte de um grupo de cientistas que pesquisa o uso de células-tronco para a reparação de ovários. Isso poderia acelerar ainda mais o aprimoramento genético das criações, ao ampliar a oferta de óvulos premium.
Mesmo numa realidade assim, o material de Viatina continuará distribuído a conta-gotas, claro, pelas razões que vimos aqui. Seja como for, o fato é que o hype em torno da vaca mais cara do mundo também traz frutos menos óbvios – e socialmente relevantes.
No dia 15 de maio, o consórcio de fazendas donas de Viatina leiloou uma prenhez da vaca para a caridade. Dividiram os direitos sobre a futura cria, uma fêmea, em 100 cotas, e venderam cada uma por R$ 30 mil. Resultado: R$ 3 milhões, destinados para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.
Viatina deve seguir produzindo filhas e filhos pelos próximos 10 anos, e um pouco depois disso não estará entre nós. Mas sua genética seguirá. Não só na forma dos descendentes; de um jeito mais literal mesmo: na forma de clones. O primeiro está em produção, e, se tudo der certo, vai nascer em novembro. Mas esse é assunto para uma próxima reportagem.
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