Entre os dias 20 de março e 8 de maio, período que separa as reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, uma série de acontecimentos indicavam que a decisão sobre o corte da taxa básica de juros poderia ser diferente da expectativa de mercado.
Assim que o governo federal anunciou a mudança sobre o resultado das contas públicas, piorando as perspectivas do compromisso fiscal, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, deixou sua mensagem clara, diretamente do encontro do Fundo Monetário Internacional (FMI), em Washington: “as âncoras fiscal e monetária são muito relacionadas”.
Naquela mesma semana, as economias local e global deixaram uma série de dados que contribuíam com a piora na análise de uma queda da Selic de 0,50 ponto percentual em maio como o Copom havia indicado na sua ata de março. O dólar chegou a encostar em R$ 5,30, o petróleo rondava os US$ 90 o barril e o prêmio pelos títulos do Tesouro americano, considerados os mais seguros do mundo, dispararam com o Federal Reserve postergando o corte de juros nos Estados Unidos.
“O Banco Central foi pouco sereno e pouco habilidoso no evento do FMI. Ele, muito antecipadamente, pegou o pior dia de mercado internacional e fez uma mudança literária, o que fez o mercado entrar em uma volatilidade enorme”, diz Felipe Guerra, Chief Investment Officer (CIO) da Legacy Capital, em entrevista ao NeoFeed.
O problema, para o Banco Central, é que o mercado acalmou depois daquele dia de máximas, mas a comunicação já indicava para o mercado que o corte na Selic seria diferente daquele 0,50 ponto percentual contratado.
“O BC foi para a reunião quase com a faca no pescoço de 0,25”, diz Guerra, que era favorável a um corte de 0,5. “No final, ficou o pior dos mundos com uma perspectiva de que parece que tem um racha dentro do Comitê.”
Com aproximadamente R$ 24 bilhões sob gestão, o fundo de investimento carro-chefe da Legacy é um multimercado de estratégia macro, que tem liberdade para investir em ativos globais.
Neste momento, a carteira da Legacy está, predominantemente, posicionada em ações de empresas americanas. “A bolsa tem um valor esperado melhor que outros ativos porque se o juro cair nos EUA é bom para a bolsa. Mas se os juros continuarem onde estão é porque a economia está bem, então a bolsa não deveria cair tanto”, afirma o CIO.
Outra posição da Legacy é “tomada” em juro longo da dívida dos Estados Unidos. Na leitura dos gestores, o juros americano não vai cair muito além do patamar atual. Como moeda, o dólar serve de hedge no portfólio. Uma parte pequena do portfólio está atrelada às commodities como cobre, ouro e petróleo.
“Essas são as posições internacionais que temos mais nos concentrado neste momento”, diz ele.
O Brasil é um caso à parte na carteira da gestora. Guerra afirma que a bolsa está bastante descontada em relação à média histórica, mas faltam “triggers” para justificar a compra de uma grande posição em ações.
Na carteira da gestora, a posição de bolsa brasileira se divide em uma long para ações consideradas baratas pela casa e short para papéis com preço justo.
“As ações estão muito descontadas, mas vemos ainda um fluxo de saída, com bastante ruído. A bolsa está barata por preço, mas o fundamento está confuso porque tem muito ruído com relação ao comportamento do governo, mas a posição técnica parece boa”, diz o CIO da Legacy.
A gestora também está capturando o prêmio de curto prazo do juro real, que está na faixa de 6,3%. Na visão da casa, esse juro real está muito alto e ficará menor seja pelo lado de uma inflação mais alta ou por um juro mais baixo.
“Estamos em um ambiente de commodities sustentadas, crescimento global, Fed querendo cortar os juros. O Brasil tinha tudo para ser um mega player para o mundo todo querer comprar, para a bolsa se valorizar, o juro real ser mais baixo e a moeda se comportar de uma forma melhor. Mas a gente não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade”, diz Guerra.
Ele complementa: “Agora estamos em uma situação na qual o cenário está bem complicado porque há uma preocupação do ponto de vista fiscal que ganhou uma perturbação pelo ponto de vista monetário. O BC vai ter de tentar acalmar um pouco esse tropeço na comunicação”.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Como você enxergou o corte de 0,25 ponto percentual do Copom?
O Banco Central foi pouco sereno e pouco habilidoso no evento do FMI. Ele, muito antecipadamente, pegou o pior dia de mercado internacional, quando a Treasury estava na máxima, e fez uma mudança literária, colocando quatro cenários, o que fez o mercado entrar em uma volatilidade enorme. Você sai de um guidance com um cenário e abre quatro cenários, o que abre um leque enorme. Ele se colocou em uma situação que o mercado interpretou que ele iria mudar o ritmo, porque tinham alguns diretores já querendo mudar o ritmo na reunião anterior. E foi para a reunião quase com a faca no pescoço de 0,25.
Não tinha como mudar?
Tinha de dar o 0,25. Só que essa comunicação feita no FMI provavelmente não foi alinhada com todos os diretores. Se ela tivesse sido alinhada, teria tido um consenso. O Banco Central e os diretores mais antigos ficaram em uma posição de ter de dar o 0,25, dado que eles falaram no FMI. Só que os outros diretores, que não participaram dessa decisão, queriam manter o guidance e uma velocidade de 0,50. O mercado acalmou muito depois daquele dia do FMI, que foi a máxima da Treasury, do dólar e do petróleo. De lá para cá, o mercado deu uma boa aliviada.
Na decisão do Copom, foi a primeira vez em mais de 10 anos que o presidente do Banco Central e o diretor de política econômica votam diferente.
No final ficou o pior dos mundos. O BC acabou dando 0,25, sem consenso, e com uma perspectiva de que parece que tem um racha dentro do Comitê, com o pessoal colocado pelo Lula votando para cortar mais e o pessoal mais antigo, que veio do outro governo, a cortar menos. Isso vai levar os economistas, no calor aqui do dia a dia, a subir a expectativa de inflação. Você conseguiu fazer o Copom ser hawkish, ou seja, conservador, apontando para 0,25, mas vai provocar uma outra expectativa de inflação porque a comunicação ficou caótica.
Qual deve ser a leitura predominante do mercado?
Ficou confuso agora porque você tem um Banco Central que está sendo conservador. E tem uma perspectiva de mudança [na presidência] do Banco Central. O que as pessoas estão lendo é que aqueles que votaram por 0,50 são pessoas que vão ser mais lenientes com relação à inflação. Mas, até você resolver isso, vai ficar um grau de incerteza grande no mercado. Talvez também tenha faltado explicitar a razão pela qual esses diretores votaram por 0,50. Mas como ficou quatro diretores do Lula contra cinco antigos, independentemente da justificativa, vai ficar sempre parecendo para o mercado que o board estava rachado. As pessoas apontadas pelo Lula não concordavam com a comunicação que foi feita no FMI.
Mas com o fim do mandato do Roberto Campos Neto no fim deste ano, a decisão passa a ser vista como politizada, não?!
Acho muito extremista falar que foi uma decisão politizada. Olhando as variáveis de mercado, à luz do que aconteceu na reunião do Copom, o dólar estava supercalmo, o preço do petróleo voltou bastante, a Treasury acalmou e o Fed está descartando um hike de juros com o mercado de trabalho americano mais tranquilo. Então, era totalmente factível votar por 0,50 também. Se o BC não tivesse feito a comunicação no FMI, 0,50 com consenso seria a decisão ideal. Então, quem votou por 0,50, na minha opinião, tomou a decisão certa. Só que, baseado na comunicação do BC no FMI, ficou numa encruzilhada. Votar por 0,50 não vejo como um erro. O problema foi a falta de habilidade dos diretores do Banco Central chegarem num consenso. E fizeram do pior jeito possível porque ficou com uma cara de politização. Mas, na verdade, o 0,50 era totalmente razoável assim como o 0,25 também. Mas teve a falta de habilidade dos diretores de conduzir esse processo.
“O Banco Central foi hawkish e ao mesmo tempo a expectativa de inflação piorou. É o pior possível”
Uma pesquisa da XP mostrou que até os gestores ficaram confusos na interpretação da decisão se o Copom foi hawkish (preocupado com a inflação) ou dovish (complacente com a expansão da atividade econômica).
O mercado está fazendo um movimento que a gente chama de bear steepening, que é quando os juros abrem como um todo, com a curva inclinando. O Banco Central foi hawkish e ao mesmo tempo a expectativa de inflação piorou. É o pior possível. A última coisa que o BC quer é um bear steepening, que é o movimento da curva toda abrindo e a curva de longo prazo abrindo mais do que a de curto. Em tese, quando você é hawkish, você fala assim: vou deixar a política monetária restritiva para colher os benefícios lá na frente. Com isso, a expectativa de inflação não vai subir. Então a curva deveria ser o curto abre e o longo fecha.
Qual é a sua avaliação sobre o Banco Central?
O trabalho do Banco Central até aqui foi exemplar. Ele conseguiu conduzir de forma bastante boa esse processo, tanto de aperto monetária como de easing monetário. Mas eles deram uma tropeçada do FMI para cá. Então, acho que o Roberto Campos Neto e o time vão tentar buscar uma solução para acalmar os ânimos nas próximas semanas porque certamente o resultado não é o que a ala do Lula gostaria nem o que a ala antiga gostaria também.
Na história, é comum essa reação do mercado após uma decisão dividida do Copom?
Esse movimento é muito atípico, não me lembro da última vez, após uma decisão do BC, que a curva abriu o dia seguinte inclinando. Causou uma incerteza grande no mercado. Estamos vendo um movimento de alta das inflações implícitas no mercado, com queda da bolsa. Ficou uma perspectiva de haver a possibilidade de você estar desancorando… Já existe um problema do lado fiscal e, agora, estamos gerando um problema no lado monetário também. Se você tem problema tanto do lado monetária como do fiscal você desorganiza demais a economia.
Muitos gestores têm manifestado a decepção e descontentamento com a decisão do governo federal de abrir mão do déficit fiscal zero. Você faz parte desse time?
Eu não vou dizer que estou decepcionado porque nunca esperei que esse governo fosse fazer nenhum ajuste fiscal muito relevante pelo lado da despesa. Sempre imaginamos que o governo fosse atuar pelo lado da arrecadação. E a arrecadação tem um certo limite. Sempre projetamos aqui na Legacy um déficit por volta de 1% do PIB para 2024, 2025 e 2026. Nunca acreditamos que o governo seria capaz de entregar superávit ou uma meta zero. Não digo que estamos surpreendidos com relação a isso, mas o que vem nos surpreendendo, na verdade, é olhar para os gastos. E eles estão correndo acima do que a gente imaginava.
“Não vou dizer que estou decepcionado porque nunca esperei que esse governo fosse fazer nenhum ajuste fiscal muito relevante pelo lado da despesa”
Algo que tem chamado mais a sua atenção?
Quando a gente coloca uma lupa sobre os gastos, vemos uma piora na previdência. A gente ouve o governo falando que eles estão passando um pente fino na lista dos beneficiados, da previdência, dos auxílios e dos programas de assistência, mas, na verdade, o que estamos vendo é um aumento muito grande no número de pessoas que estão recebendo o auxílio. O crescimento da despesa nessa conta de gastos com previdência, que agora está indexada ao salário mínimo e sendo corrigido pela inflação mais o PIB, tudo isso está fazendo com que a previdência cresça muito mais rápido do que a gente projetava anteriormente. Isso vai levar, ex-post, a um gasto maior e a um déficit maior também. Não diria que a gente está surpreso, mas pelo menos a gente esperava que essa parte de concessão de benefícios e auxílios fosse ser mais controlada e está acelerando, na verdade. É mais um ponto de preocupação do ponto de vista fiscal.
E os juros nos Estados Unidos vão cair?
O que a gente acredita é que os juros nos Estados Unidos estão em um patamar restritivo. O Fed passou essa mensagem, que acreditamos também que ele está correto nessa avaliação. Mas achamos que ele não está tão restritivo assim para fazer com que a economia vá para uma desaceleração muito acentuada. Ele está restritivo a ponto de provocar uma desaceleração muito gradual da economia. Continuamos vendo a economia americana crescendo ao longo dos próximos trimestres, um crescimento sólido, mas um crescimento que está mais próximo do potencial.
O que isso significa?
Em algum momento, se você tiver um juro restritivo e o crescimento caminhando para o potencial, você provavelmente também vai ter queda da inflação. Então, componentes como carro usado, como aluguéis, que estão pressionando muito a inflação, acreditamos que vão, ao longo do tempo, ajudar a trazer a inflação para baixo. Tem sido muito difícil projetar a inflação no curto prazo.
Está difícil enxergar um cenário claro?
As pessoas têm errado muito. Nós também temos errado as projeções de inflação. É fácil projetar a inflação de bens nos Estados Unidos, a inflação ligada à parte imobiliária, mas tem sido muito difícil projetar a inflação de serviço depois da pandemia. Você vê que o mercado e os economistas erram constantemente essas projeções. A economia vai desacelerar devagar e vai permitir que o Fed corte o juro muito pouco e mais adiante. O Fed, agora, foi muito claro: o juro está restritivo para mim então vou mantê-lo nesse patamar restritivo, pelo tempo que for necessário, até a inflação cair e eu ganhar confiança para cortar. Nesse sentido, ele tirou a perspectiva de aumento dos juros.
A eleição presidencial nos Estados Unidos preocupa você de alguma forma?
Quem diz hoje que sabe o que vai dar na eleição está mentindo. Porque é uma eleição sempre muito apertada nos EUA, o país é super polarizado. E ainda é muito cedo para ter uma visibilidade com relação ao Congresso. Mas, olhando a economia americana crescendo de forma sólida, com o banco central independente fazendo o trabalho dele, os Estados Unidos vão bem.
Joe Biden ou Donald Trump: algum deles pode resolver o déficit americano?
Independentemente se será Biden ou Trump, os dois vão continuar trabalhando com déficit fiscal. Quem vai apontar e tomar as medidas necessárias para reduzir esse déficit? Com a economia crescendo 3%, não tem nenhuma necessidade de trabalhar com déficits enormes como os Estados Unidos têm trabalhado. Em algum momento isso vai ter de ser apontado e é um problema para a economia americana. Então, independentemente de quem ganhar, não vemos muita vontade política, de nenhum dos dois lados, de resolver esse problema.
Na sua última entrevista ao NeoFeed, você falou sobre as novas situações que um gestor tem de lidar. Parece que esse é o novo normal, não?
Com a volatilidade dos dados, está muito mais difícil de projetar a economia após a pandemia. Eu diria que é porque teve muito estímulo fiscal e um desequilíbrio no mercado de trabalho temporário, que levou a uma inflação bastante alta. O fiscal tem diminuído o estímulo, embora os EUA ainda trabalhem com déficits relevantes. Por mais que o juro esteja elevado, o patamar de fiscal que os governos vêm colocando deixa o monetário e o fiscal na contramão, um está matando o efeito do outro. E faz com que o trabalho de um banco central seja bem mais difícil.
O Brasil é um exemplo.
Vemos isso no Brasil muitas vezes, com o governo gastando e o BC tendo de deixar o juro alto para poder conter o ímpeto da economia. O desvio com relação às projeções dos economistas nunca foi tão grande nos dados. As narrativas e o desenho do cenário ficam bem mais desafiadores.