Mais da metade das franqueadas brasileiras (54%) são mulheres, de acordo com uma pesquisa da Communit/Hibou divulgada no fim do ano passado. No entanto, quando o assunto é multifranqueado (quem gerencia mais de uma unidade), o perfil feminino perde protagonismo. Em um recorte solicitado por PEGN, o instituto identificou que em grupos empresariais que existem há mais tempo e têm mais de duas lojas – um universo de cerca de 26,8 mil franqueados –, a proporção é de três homens para cada mulher. Ou seja, as multifranqueadas são um terço do total – e também operam menos lojas. Como foi o primeiro estudo desse tipo, não há histórico comparativo dos dados.
Na avaliação da especialista Lyana Bittencourt, CEO do Grupo Bittencourt, um perfil mais cauteloso e uma maior aversão a riscos podem ser algumas razões pelas quais multifranqueadas têm uma expansão mais contida, no geral.
“Elas podem preferir uma expansão mais controlada e sustentável ao invés de um crescimento rápido, que pode ser mais arriscado. Há ainda no mercado uma barreira sistêmica a ser ultrapassada, que é a maior dificuldade [das mulheres] de conseguir acesso a capital para investimento, muitas vezes com as instituições exigindo altas garantias que podem comprometer a segurança familiar”, observa.
A gestão de negócios múltiplos, por si só, já traz uma gama de desafios, de acordo com Bittencourt. Entre eles, a especialista lista encontrar e reter talentos, manter a qualidade e o padrão do serviço ou produto em todas as unidades, gestão, liderança e estruturação de uma organização que vai gerir todas as unidades.
Essa carga, no entanto, acaba sendo um ponto positivo para mulheres, que costumam ter de lidar com os papéis sociais, pessoais e profissionais com a mesma intensidade.
“A multiplicidade de funções e papéis desempenhados reverberam de forma positiva nos negócios, uma vez que garantem capacidade de gestão de situações distintas, lidar com desafios diários, cuidar de pessoas, flexibilidade e, ainda, atingir resultados”, diz.
Ana Vecchi, especialista em expansão de negócios e CEO da Ana Vecchi Business Consulting, acrescenta que as multifranqueadas, assim como mulheres empresárias de um modo geral, costumam ter uma jornada maior no dia a dia, precisando conciliar as atividades no trabalho com demandas da maternidade, por exemplo. “É mais um desafio pessoal familiar do que um desafio empresarial”, pontua.
Iniciou multifranquia com lojas de repasse
Viviane Ferreira, 36 anos, é uma das empreendedoras que nadam contra a corrente e buscam protagonismo nesse universo. Ela veio do mercado de startups, abriu uma consultoria B2B e assumiu, há cerca de um mês, sua segunda franquia da PopCorn Gourmet, em Fortaleza (CE). O plano, de acordo com ela, é crescer cada vez mais como multifranqueada.
Ferreira abriu a primeira unidade da marca no fim do ano passado, no Rio de Janeiro, cidade em que mora. As duas foram frutos de repasse (quando um antigo franqueado vende a operação para um novo empreendedor). Agora, Ferreira pretende abrir pelo menos mais duas unidades, do zero, até junho. “Ainda estamos estudando, mas a princípio será no Rio”, adianta.
Franquias:
A empreendedora decidiu apostar no franchising após consolidar uma empresa de consultoria B2B. Ela sentia a necessidade de empreender também no B2C, por uma maior segurança financeira, e a opção pelo setor foi por apresentar um modelo de negócio já testado e validado. “É muito melhor investir em algo formatado. Eu venho de startup, imagina quantas vezes eu pivotei produto? Franquia tem alguém que já testou lá atrás para você”, diz.
No início, ela precisou dedicar parte de seu dia para aprender a lidar com produtos, público e o gerenciamento do varejo. Hoje, divide as atenções para cada um dos negócios e para a vida pessoal na mesma agenda.
O fato de ter assumido unidades de repasse também trouxe o desafio de aculturamento para as equipes que ela assumia. O negócio vem pronto e maduro na região, mas, muitas vezes, carrega a assinatura do franqueado antigo. “Esbarramos bastante nisso, principalmente em Fortaleza, mas temos uma formação de gestão de pessoas que nos ajudou muito”, diz.
Mudança de cidade e apoio familiar
Há cerca de vinte anos, a empreendedora Ana Paula Abdalla, 59 anos, encarou algo semelhante ao que Ferreira, da PopCorn Gourmet, passou, ao assumir sua primeira franquia de repasse do McDonald’s em Bragança Paulista, no interior de São Paulo. Ela se mudara de Santos para a nova cidade para poder se tornar franqueada. “Lembro até hoje da porta do caminhão de mudança fechando e eu pensando se tinha tomado a decisão certa”, conta.
Formada em arquitetura, Abdalla construiu uma carreira no turismo em Santos. Após se casar e ter a primeira filha, vendeu a agência que tinha e foi motivada pelo irmão a investir em uma franquia da rede de fast-food – ele é franqueado da marca na Baixada Santista.
A empreendedora fez o treinamento da rede e contou com a ajuda da família para conciliar a recente maternidade com a mudança de vida, de cidade e de posto. Ao chegar em Bragança, deparou-se com novos desafios. “As pessoas já estavam há ano e meio trabalhando juntas, em uma equipe. Eu coloquei um gerente e fui desenvolvendo a equipe, mas o primeiro ano não é fácil. Nunca é. Eu ficava 16, 18 horas por dia no restaurante”, lembra.
Hoje, Abdalla é dona de cinco restaurantes da rede (dois em Bragança Paulista, dois em Atibaia e um em Mairiporã), mas conta que demorou mais para sair do primeiro para o segundo, que foi aberto em 2010, em Atibaia, do que para abrir os outros. A própria Arcos Dorados, franqueadora do McDonald’s, vinha passando por mudanças na época, que adiaram o avanço da multifranqueada.
“Um novo restaurante em outra cidade é sempre um desafio, mas as pessoas já sabiam minha forma de trabalhar, a implantação foi mais fácil”, diz. Atualmente, a franqueada tem 430 funcionários, que se dividem entre os restaurantes e o back office, que ela montou pouco depois de abrir a primeira loja.
Da licença-maternidade para as multifranquias
A licença-maternidade foi o principal fator que levou Marília Nör, 40 anos, para o franchising. Ela já trabalhava havia mais de dez anos em uma empresa de tecnologia, mas resolveu aproveitar o período de afastamento para buscar mais flexibilidade de horários e ter um negócio próprio.
A ideia “apareceu” no hall do prédio em que ela morava, em Porto Alegre (RS). “Tinha um minimercado de uma marca concorrente [da minha atual rede] e nos tornamos clientes assíduos. Aquilo mostrou o potencial daquele mercado para nós”, diz.
Assim, em 2021, Nör e o marido, Arthur Vinicius, resolveram adquirir algumas unidades da rede de microfranquias market4u, que já estavam em operação na capital gaúcha. Na primeira leva, foram 11 minimercados de repasse. Cerca de cinco meses depois, mais nove. No entanto, ela fez revisão de alguns pontos, encerrou lojas e abriu outras.
No ano passado, eles receberam a oferta de comprar dez unidades da concorrente Super Pocket, que queria descontinuar as atividades no mercado. Compraram, e transformaram todas em market4u. “Fizemos a virada de chave da maioria em cerca de duas semanas”, conta. Hoje, Nör está à frente de 26 unidades.
Nesse ínterim, a empreendedora se tornou mãe novamente e precisou se dividir entre a maternidade de duas crianças pequenas e a gestão de negócios múltiplos, indo ao centro de distribuição todos os dias. “Agora que os dois estão na escolinha eu estou conseguindo me reorganizar, ir à academia, cuidar de mim.”
Inspiração
Entre as 50 maiores redes de franquias do Brasil, reveladas no ranking da Associação Brasileira de Franchising (ABF), menos de 10% foram fundadas por mulheres. Das mencionadas nesta reportagem, apenas uma foi fundada por uma mulher.
Na visão das especialistas, marcas fundadas por empreendedoras mulheres podem ser mais atrativas para o fomento de multifranqueadas, por gerar identificação com propósitos, história de vida ou até com o segmento. “As fundadoras são inspirações, enfrentam o mercado, mostram a que vieram”, diz Ana Vecchi.
Bittencourt acrescenta que uma maior presença de mulheres fundadoras de marca pode dar um maior senso de confiança para empreendedoras de que elas também podem chegar lá. “Além disso, redes geridas por mulheres tendem a ter políticas mais inclusivas e uma maior compreensão dos desafios de uma mulher que empreende e equilibra a responsabilidade com família e filhos”, diz.