Nunca se falou tanto sobre a necessidade de buscar um mundo que equilibre produção e consumo. Com o interesse da indústria em cumprir metas ESG (sigla em inglês para governança ambiental, social e corporativa), um círculo virtuoso se formou, no qual a sociedade não só cobra como exercita melhores práticas para não degradar os recursos naturais.
Isso fez a economia circular ganhar relevância, na medida em que se propõe a transformar o sistema vigente – cuja trajetória é extração, transformação, consumo e descarte – a partir da reciclagem e da revalorização do produto ao longo de todo o processo.
No entanto, para que a circularidade possa acontecer, lembra Beatriz Luz, fundadora da Exchange 4 Change Brasil e idealizadora do Hub de Economia Circular, a indústria precisa liderar a transição. “Para isso, a chave é a colaboração, a integração da cadeia produtiva. É preciso fazer junto – fornecedor, cliente e outros parceiros.”
“O pensamento dentro da economia linear a que a gente está acostumado expurga a inovação e precisamos produzir com uma nova visão de mercado”, corrobora Gui Brammer, fundador da empresa de transformação de resíduos Boomera e head de economia circular do grupo Ambipar.
Negócios sustentáveis:
A virada de chave já vem acontecendo em diferentes setores. Na moda, onde a economia circular tem sido bastante trabalhada, peças de segunda mão e upcycling (no qual elas são repaginadas em um look exclusivo ou usam tecidos de coleções antigas) são tendência. Um estudo da WGSN, empresa de previsão de tendências, indica um crescimento de 15% a 20% nesse mercado até 2030, ultrapassando o fast-fashion, segundo Leticia Araujo, especialista em tendências de comportamento e consumo.
Com base em anos de pesquisa, a Ellen MacArthur Foundation, referência mundial em economia circular, listou os setores em que as oportunidades circulares devem ter destaque: aluguel e revenda de roupas; excedentes de alimentos; coleta; mobilidade; produção agrícola regenerativa; renovação e atualização de edifícios; reutilização de plástico e valorização de subprodutos, entre outros. Enfim, um mundo de possibilidades de bons negócios para seus donos, para o planeta e para a humanidade.
Veja a seguir seis histórias de empreendedores que apostam na tendência:
Nem caçamba, nem aterro

A arquiteta Raffaela Vecchio, 37 anos, sempre se incomodava com o destino dos materiais que eram removidos das obras em que atuava: a maioria ia parar em caçambas que, por sua vez, a despejavam em aterros sanitários e afins. “Eu não me conformava”, lembra.
Foi dessa dor que surgiu em 2020 a Relóco, uma startup paulistana que incentiva o reúso de materiais que sobram de obras e reformas. “Como não achei uma empresa que fizesse esse serviço, resolvi tomar a iniciativa.”
“Na minha área, quando o assunto é sustentabilidade, fala-se sobre reaproveitamento de energia, por exemplo, mas pouco ou nada sobre resíduos”, diz. “Notei que poderia trabalhar nesse campo e também no social, porque vi quanto material é rejeitado e quantas pessoas não têm acesso a bons produtos.”
Vecchio comercializa peças novas e usadas, como pisos, revestimentos, pias, bancadas de banheiro e janelas. Mais recentemente, também móveis e eletrodomésticos, embora não seja o foco. “Muitos donos de apartamentos, quando recebem o imóvel da construtora, recusam os materiais que fazem parte da obra para instalar outros do seu gosto.”
A startup se responsabiliza por intermediar a venda deles. Os interessados enviam fotos para a equipe, os materiais são avaliados e disponibilizados na loja virtual, em geral, por no mínimo metade do valor de mercado. A empresa fica com 30%.
Produtos que não são vendidos, o dono não tem interesse em pegar de volta ou chegam como doação são encaminhados a ONGs parceiras, para utilização em obras de melhoria habitacional de famílias de baixa renda.
Com isso, desde a sua fundação, a empresa já deu melhor destino a 150 toneladas de resíduos. “A ideia é não deixar nada parado e colaborar para a redução do descarte de obras. Sempre tem quem possa aproveitar”, afirma.
Retalhos que reconstroem

Antes de fundar a Zwanga Africa Fashion, em 2016, em Macapá (AP), Rejane Soares, 45 anos, já tinha certeza de que iria trabalhar com moda e projeto social. Sempre se identificou com o mundo fashion e não desistiu do sonho nem mesmo depois de ouvir de uma professora que, como mulher negra, ela jamais seria alguém que vestiria outra pessoa; no máximo, iria limpar o espaço de trabalho de um estilista.
Soares foi pavimentando seu caminho e mirando a moda afro para resgatar o orgulho de suas origens. Zwanga, na língua banto, significa “o que é meu, o que me pertence”. Ela cursou moda na Universidade Nacional da Colômbia e voltou formada e animada para abrir seu próprio negócio.
Nesse meio-tempo, Soares já tinha adquirido equipamentos e matéria-prima. Dois meses depois de retornar à capital do Amapá, no entanto, sua casa foi assaltada e levaram praticamente tudo. O que restou foi uma sacola com retalhos. O episódio consolidou a ideia de trabalhar com material que poderia ser utilizado em vez de descartado.
Hoje, a Zwanga produz com retalhos de inspiração africana – coloridos e vibrantes –, que recebe de outros ateliês brasileiros, da Guiana Francesa e até de países da África. São cerca de cem metros de tecido por mês, que viram turbantes, roupas, brincos e bolsas. “Quando tu junta retalhos cria outra vida. É gratificante fazer parte de um universo que reconstrói”, diz.
A empreendedora conta que as coleções são trabalhadas com modelos reais nos desfiles, nas redes sociais, no WhatsApp e, sobretudo, no boca a boca. A produção é confeccionada no Espaço Afrocolaborativo que ela mantém na periferia da cidade.
Além da costura, Soares capacita mulheres para empreender como trancistas, maquiadoras e costureiras. “A Zwanga oferece oportunidades. Não quero ficar rica, quero o suficiente para pagar minhas contas e minha cervejinha. Penso que, para enriquecer, tem de ir sozinho, não dá para levar muita gente. Esse não é o meu jeito – alguém tem de pensar no micro também”, diz.
Bombou nas redes:
Vida nova a resíduos industriais

A palavra transformação acompanha a vida de Ariane Santos, 44 anos, de Curitiba (PR). De família periférica, que sempre valorizou a educação como base para mudanças, ela cursou administração de empresas na Universidade Federal do Paraná e frequentou aulas de design como disciplina extra.
O que era um hobby, num determinado momento da sua vida, tornou-se vital. Ao passar por momentos turbulentos ligados a problemas de saúde na família, encontrou na produção de cadernos com reaproveitamento de retalhos de tecido uma atividade que manteve mãos e mente ocupadas.
A partir dessa experiência, criou a Badu Design, em 2013. “É um negócio de impacto socioambiental, com foco em economia circular, que atua na transformação de resíduos industriais em produtos com design, por meio de upcycling”, define.
Ela explica que a empresa evita o descarte em aterros sanitários e aumenta o ciclo de vida dos materiais. Os clientes informam quais resíduos e a quantidade disponível, e a Badu propõe ideias para transformá-los por meio de upcycling. É assim que cintos de segurança vindos da indústria automotiva (que não passaram pelo controle de qualidade) ou de seguradoras (que os retiram de carros acidentados), por exemplo, tornam-se mochilas e bolsas.
Santos diz que a Badu não enxerga os resíduos como doação, porque a empresa recompra a peça acabada para oferecer como brinde – o excedente pode ser vendido na loja virtual.
Além disso, o projeto de transformação inclui o patrocínio de cursos de educação em circularidade para comunidades. Já são mais de 1,5 mil mulheres formadas. Elas atuam tanto na produção da Badu como em trabalhos individuais. “Nós as chamamos de inovadoras ambientais. Quanto mais gente dentro desse círculo, melhor. Envolvemos a indústria e a sociedade para todos entenderem que fazer mudança ambiental impacta o mundo”, conclui.
Guarda-roupa temporário

Mães e pais, sobretudo de primeira viagem, provavelmente já se depararam com o dilema: afinal, de quais e de quantas roupinhas o bebê, de fato, precisa? E com que frequência terão de ser substituídas por tamanhos maiores? Mais: o que fazer com tantas peças que a criança perde tão rapidamente?
Essas também foram perguntas comuns a Luanda Oliveira, 43 anos, de Belo Horizonte (MG), quando engravidou do filho Léonard, hoje com 6 anos. “Na época, eu morava na França e, como sempre fui ligada a questões de sustentabilidade, procurei um serviço que pudesse resolver questões de enxoval; infelizmente, não encontrei”, conta.
De volta ao Brasil, quando Léo estava com quase 2 anos, ela fundou a Circulô com uma sócia, que ficou pouco tempo. O negócio foi pensado para atender crianças no primeiro ano de vida e dispõe de kits de tamanhos RN (recém-nascido), 1 a 3 meses, 3 a 6 meses, 6 a 9 meses e 9 a 12 meses.
“Desenvolvemos um guarda-roupa com peças confortáveis, fáceis de vestir e desvestir, agênero e que possibilitam combinações variadas. Todas são feitas de algodão sustentável [certificado tanto na colheita quanto em relação à mão de obra]”, explica.
A Circulô funciona por meio de assinatura dos kits por tamanho (custa R$ 232/mês para 18 peças RN e 16 peças para os demais números), e o assinante pode contratar pacotes extras, como peças complementares para o inverno ou o verão, além de fraldas de tecido, bodies, saco de dormir e sling.
Quando os kits são devolvidos, a Circulô faz a higienização e eventuais reparos. “O guarda-roupa fica pronto para vestir outros bebês. Isso é bom para a mãe, porque alivia sua carga mental por não ter de pensar no assunto, para o bebê, que fica bem-vestido e de forma confortável, e para o meio ambiente”, pontua.
Brechó contemporâneo

Foi-se o tempo em que esse tipo de negócio ocupava um lugar apertado, entulhado de bagunça e com cheiro de mofo. Hoje, os brechós são lojas “normais”, com roupas de qualidade e limpas.
Uma das responsáveis por trazer esse novo parâmetro é Bruna Vasconi, 42 anos, fundadora da Peça Rara, em Brasília (DF). Quando montou seu negócio, em 2007, a ideia de um brechó ainda estava ligada à imagem de algo improvisado e cheio de refugos.
Mas ela pensou em fazer algo diferente. “Estava na faculdade de psicologia, com dois bebês, pouco recurso para investir em uma atividade e nenhum tempo para esperar me formar e decolar na profissão. Entre uma aula e outra, vendia de tudo: semijoias, chocolates, produtos de beleza…”, lembra.
O estalo para se aventurar nesse mercado veio quando Marcelo, seu marido, trouxe uma edição da Pequenas Empresas & Grandes Negócios, na qual uma empreendedora contava como havia começado um brechó infantil na própria casa: “Pensei na mesma hora: também posso e vou fazer!”.
Ela e uma amiga juntaram roupas dos filhos e doadas por amigos, alugaram uma loja pequena e iniciaram a atividade. A sociedade durou pouquíssimo. Elas se separaram, e Vasconi abriu a Peça Rara, que comercializa moda infantil, feminina e masculina – os itens entram em consignação.
“Ela surgiu por necessidade, mas, à medida que fui trabalhando, percebi a grandeza do negócio em termos financeiros e, principalmente, pelo propósito. Rompemos padrões e preconceitos ao longo dos anos. Se antes as pessoas torciam o nariz ao descobrir que os itens eram usados, hoje encaram bem melhor a ideia de reaproveitar, reutilizar”, avalia.
E mais gente vem pensando assim. A Peça Rara franqueou a marca e tem 65 lojas e mais de cem unidades vendidas. O fôlego para o crescimento veio em 2021, com a entrada do grupo SMZTO, e o alcance aumentou quando a atriz Deborah Secco virou sócia, em 2022. O faturamento previsto para 2023 foi de R$ 150 milhões.
Franquias:
Respeito à cadeia produtiva

Beleza cada vez mais sustentável: esse foi o ponto de partida para a criação da Yes! Cosmetics, em 2000, pelos sócios Cândido Espinheira, 49 anos, Felipe Espinheira, 47, e Ketty de Jesus, 55, em Recife (PE). Naquela época, o conceito clean beauty (movimento que demonstra preocupação e cuidado com produtos de beleza e os impactos que eles causam na saúde humana e no meio ambiente) e de sustentabilidade em relação a cosméticos e produtos de higiene pessoal eram praticamente inexistentes. No entanto, foi o balizador para a marca nascer e crescer.
Atualmente, todo o portfólio da Yes! é vegano, não testado em animais. A empresa trabalha com matéria-prima rastreável e utiliza embalagens de papel certificado com selo FSC, proveniente de florestas de manejo sustentável.
“Damos uma grande atenção a toda a cadeia, desde trabalhar com ingredientes sustentáveis, priorizando orgânicos e naturais, o que ajuda a minimizar impactos que os químicos podem causar na pele e na natureza”, conta Cândido, CEO.
Ele explica que algumas escolhas podem parecer mero detalhe, mas são fundamentais para gerar menos danos à saúde e ao meio ambiente: “Um exemplo é o gel esfoliante. Muitas marcas utilizam plástico nas micropartículas que promovem a esfoliação. Nós usamos sementes, ou seja, matéria-prima de origem vegetal. Nossas fórmulas levam materiais biodegradáveis, feitos a partir de ingredientes renováveis”.
O CEO conta ainda que vários itens da marca têm refil. “É o caso dos de maquiagem. Ao repor o blush, por exemplo, dá para comprar apenas a bandejinha com o produto e encaixar no estojo. O consumidor paga menos e reutiliza a embalagem. Priorizamos o design regenerativo, projetado para durar mais”, diz.
O incentivo à reciclagem é outro diferencial da Yes!. A rede – são 130 unidades franqueadas pelo Brasil – disponibiliza pontos de coleta nas lojas, que recebem descartes da própria marca e de outras também.
Esta reportagem foi publicada originalmente na edição de setembro da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios.