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Fonte: Redação

Enquanto o salto do e-commerce nos últimos três anos rendia até IPO (oferta inicial de ações) bilionário de firma de entrega na Bolsa, os moradores de favelas viviam uma corrida de obstáculos para receber o que compravam on-line. Território do empreendedorismo de necessidade por excelência, coube à própria comunidade criar soluções.

À frente de uma delas está Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa) e empresário serial. Um dos negócios da sua Favela Holding — conglomerado com mais de 20 empresas — é a Favela LLog, joint-venture com a companhia de logística Luft que entrega pacotes em mais de 700 favelas de Rio e São Paulo.

O negócio nasceu em 2015 para atender à demanda da gigante Procter & Gamble, dona de marcas de consumo como Gillette e Pampers e que queria acessar os clientes da comunidade. Hoje, a Favela LLog faz a chamada “última milha” da entrega nas favelas para Amazon e Natura

Além da inserção pelo consumo, a firma de logística também tem impacto social como empregadora: parte de sua equipe é formada por ex-presidiários beneficiados pelo Programa Recomeço, da própria Cufa.

Depois de um salto na pandemia, a Favela LLog se prepara para nacionalizar sua oferta, chegando em até 5 mil comunidades de todo o Brasil no próximo ano. Na entrevista abaixo, Athayde fala sobre os desafios que a inclusão do consumidor da favela no comércio eletrônico impõe — e o que vem dando certo na prática.

A explosão do “e-commerce” na pandemia se deu, primeiro, com uma favela excluída desse fenômeno. Qual era o principal obstáculo e como ele foi sendo resolvido?

Primeiro, a solução ainda está muito distante. O que temos é um paliativo, algumas soluções que têm funcionado. Hoje, 60% das pessoas nas favelas compram no e-commerce, mas não recebem em casa. Elas recebem em uma padaria, no trabalho ou na casa de amigos.

Os maiores gargalos são dois. Um é o tipo de território: na favela, muitas vezes é fisicamente impossível entregar de caminhão ou até de carro. Uma empresa tradicional precisaria criar uma outra empresa para fazer só isso. Além disso, parte significativa desses territórios é um lugar proibido, difícil de entrar. E ainda há outros obstáculos, como o fato de a maioria das favelas não ter nem CEP.

Mas a demanda por produtos existe como em qualquer outro lugar…

Assim como a sociedade como um todo, conforme a favela vai ficando mais conectada, se sentindo mais segura para comprar on-line, ela consome mais, claro. Por isso que a solução do desafio logístico é ganha-ganha, bom tanto para a empresa como para o consumidor.

Como a Favela Llog surgiu?

Ela existe desde 2015. Começou como um ecossistema para ajudar empresas que queriam acessar esses territórios. E como via de mão dupla: não apenas para o morador de favela consumir, mas também empreender, se inserir nessa economia do e-commerce.

Esse início foi com a demanda de uma empresa específica?

A primeira foi a P&G (dona de marcas como Gillette e Pampers). No Rio, montamos espaços de distribuição a partir dos quais a gente fazia a última milha. Começamos em favelas como Complexo da Penha, Rocinha, Cidade de Deus etc. Hoje, estamos trabalhando com Natura e Amazon.

Optamos por trabalhar com dois parceiros e, a partir deles, expandir para o país. Conversamos com outras marcas, mas a questão é capacidade.

Mas como contornar aqueles gargalos que o senhor mencionou?

A saída é montar uma inteligência a partir da memória e do conhecimento dos moradores. São eles que conhecem as pessoas pelo nome, que compreendem o ponto de referência. É fundamental usar as pessoas dos próprios territórios.

A partir dessa inteligência, a gente cria um mapa virtual da comunidade, atribuindo um número àquele endereço. E o veículo vai se adaptando. Com a P&G, começamos usando moto, depois triciclo com baú, posteriormente até carro e caminhonete.

Onde vocês estão hoje?

No Rio estamos em mais de 300 favelas. Em São Paulo, são umas 450. O Rio é, sem dúvida, o maior desafio para esse serviço no país; depois vem São Paulo. A partir desses espaços, você fica preparado para o resto do Brasil. Nosso plano é expandir nacionalmente, terminando 2024 em 5 mil favelas.

Agora, o obstáculo da violência não é mais desafiador?

Quando começamos a trabalhar com a Natura, a gente avisou: não trabalhamos com segurança. O que nós temos é um projeto chamado Recomeço, que forma e contrata pessoas oriundas do cárcere para fazerem entrega. Não temos acordo com delinquentes, nem relações de promiscuidade.

O que pode haver é um respeito maior pela instituição Cufa. O que não significa que haja garantia de nada… Mas problemas são raríssimos. Em São Paulo, com a Natura, houve no máximo cinco roubos, sendo que quatro produtos foram posteriormente devolvidos.

Como comunicar ao consumidor da favela sua inclusão nesse ecossistema?

No nosso caso, recorremos a todo o ecossistema da Favela Holding. Fazemos material de divulgação avisando que determinado site passará a entregar naquela comunidade. Vamos ao baile funk e anunciamos. Tem que estar nos espaços.

Uma série de startups está atuando nesse mesmo problema. Como o senhor enxerga esse movimento?

Com bons olhos, claro. Não temos o monopólio do bem, queremos mais é que outras empresas levem negócio pra dentro da favela, criando um ecossistema de fato. Agora, cada solução dessas enfrenta seu desafio.

A favela tem códigos próprios, é preciso conhecê-los e saber que eles são quebrados o tempo todo. Há guerras de facção, as regras mudam todo dia. Não é fácil para ninguém. São territórios controlados, não é um shopping center em que o Estado está presente. Mesmo assim, esse negócio é, sim, possível.

A chegada de uma solução logística é indutora de consumo?

Sim, e isso acontece muito rápido na prática. No nosso exemplo, temos contrato com a Amazon que permite que entreguemos os produtos encomendados no mesmo dia. Conforme os consumidores veem os pacotes chegando rápido, vão ganhando mais segurança para comprar.

Eles passam a ter acesso a um universo de produtos que muitas vezes nem sabiam que podiam acessar, inclusive nos lugares mais difíceis da quebrada.

O senhor tem vários negócios com grande presença nas comunidades. Como tem evoluído o poder de compra do morador das favelas hoje, com a queda do desemprego e da inflação e o início da queda de juros? Já dá para sentir um impacto na ponta?

O efeito existe quando você olha dados oficiais sobre renda. Mas, na favela, outras coisas contam. Lá, o empreendedorismo tem outra dimensão: ou você empreende ou morre. O cara tem que se virar. É claro que a favela é um reflexo do que acontece no restante da sociedade, mas seus moradores nasceram, viveram e vão morrer sempre desenvolvendo outras formas de sobrevivência.

O ecossistema está sempre funcionando, está todo mundo consumindo e produzindo, independentemente do emprego. Mas, se a gente está a cada dia entregando mais produto da Amazon nas favelas, é sinal de que há demanda para chegarmos em muito mais favelas, o consumo está crescendo.

Agora, na outra ponta, o morador de favela está inserido no “e-commerce” como empreendedor?

Com a explosão das redes sociais, a possibilidade se expandiu, e o morador de favela entendeu. Hoje, a quantidade de pessoas que empreendem no e-commerce é tão grande que, a partir de 2024, teremos um novo negócio: um marketplace para empreendedores de favelas que querem vender on-line.

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