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Combater milícias exige cortar na própria carne

Fonte: Alice Rabello

Quando surgiram, elas diziam combater a criminalidade, inibindo a ação de pequenos criminosos, impedindo o tráfico de drogas e começando a cobrar dos moradores uma taxa de proteção

Quando as milícias apareceram no Rio de Janeiro, o perigo foi subestimado por muita gente. Políticos de uma direita mais moderada, como César Maia e Eduardo Paes, as defendiam. Em 2007, às vésperas dos Jogos Pan-Americanos, Cesar Maia as classificava de “autodefesa comunitária”. A bem da verdade tanto ele como Paes mudaram o discurso. Mas houve gente que, desde o início, defendeu o combate às milícias como prioridade na segurança pública, mesmo sabendo das dificuldades. E essas são muitas. Combater milícias exige cortar na própria carne.

Daqueles dias em diante, o problema só ganhou corpo.

Assim como a máfia italiana, no Rio de Janeiro as milícias têm atividades criminosas em vários campos do aparelho de Estado. Formada principalmente por policiais, ex-policiais e bombeiros (que têm licença para portar armas de fogo…), têm acordos espúrios com autoridades nos três poderes da República.

Quando surgiram, elas diziam combater a criminalidade, inibindo a ação de pequenos criminosos, impedindo o tráfico de drogas e começando a cobrar dos moradores uma taxa de proteção. Mas quem não pagasse, sofria retaliações. Só que, expulsos os traficantes, a milícia assumiu o comércio de drogas, pois o mercado consumidor não desapareceu com a saída dos antigos fornecedores. Em muitos casos, foi negociada a volta dos antigos traficantes, que passaram a pagar um imposto aos milicianos.

Com o tempo, estes últimos assumiram o controle de qualquer atividade que envolvesse dinheiro, proibindo a presença de concorrentes. Grilagem de terras e especulação imobiliária, com a construção e venda de imóveis, venda de botijões de gás, fornecimento de água por carros pipa ou transporte alternativo com vans, acesso à internet, entre outras. A morte de Marielle ocorreu porque sua atividade como vereadora incomodou a família Brazão, que grilava terrenos na região de Jacarepaguá.

Milicianos passaram a funcionar também como matadores de aluguel. E se tornaram mão-de-obra especializada para bicheiros que, de tempos em tempos envolvem-se em disputas armadas.
Aos interessados em conhecer com mais detalhes essa relação entre milicianos e bicheiros recomendo a série “Vale o escrito”, disponível no GloboPlay.

O controle territorial e político de um grande número de comunidades adubou a aliança entre milicianos e políticos inescrupulosos em busca de votos. Em geral, a aliança se deu com políticos de direita, mas, para surpresa de muitos, não só desses. Hoje, tal como ocorre com a máfia italiana, a milícia está em vários pontos do aparelho de Estado ou têm influência direta neles. A família Bolsonaro sempre protegeu milicianos, chegando a condecorá-los. Seus filhos tinham como assessores ex-policiais matadores, chefes de milícia.

Os irmãos Brazão foram presos pela PF, juntamente com o ex-chefe de polícia. Mas sempre se soube que eram mafiosos. Um dos irmãos Brazão é deputado federal. Outro foi eleito pela Assembleia Legislativa para o Tribunal de Contas do estado. Um deles lançou o filho, há poucos dias, pré-candidato a vereador, num ato com a presença prefeito do Rio, Eduardo Paes. Uma deputada estadual contra a qual há provas de vínculo com milícias – tinha até um codinome, “madrinha” – está sendo protegida por seus pares na Assembleia Legislativa e não teve o mandato cassado. E por aí vai.

Até recentemente uma deputada federal acusada de ligação com milícias era ministra de Lula. E, mesmo agora, depois que os Brazão estão presos, acusados de mandantes da morte de Marielle, o vice-presidente nacional do PT veio a público defender um deles, pondo em dúvida as conclusões da Polícia Federal, mesmo sem qualquer argumento consistente.

Isso tudo dá a medida da complexidade do problema, caso se queira, de fato, combater as milícias. Tudo pode ser resumido numa frase: combater as milícias exige cortar na própria carne.

Resta saber se os governos, os partidos e as demais instituições do Estado estão dispostos a fazer isso.

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