As investigações sobre uma suposta tentativa de golpe de Estado após a eleição presidencial de 2022 e agora o marco de 60 anos do início da ditadura militar no Brasil reforçam para Carlos Fico, professor de História do Brasil, a necessidade de se alterar um artigo da Constituição que permite o “intervencionismo militar”.
Autor de 13 livros sobre o assunto e referência entre estudiosos, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) disse à CNN que o artigo 142 é um “obstáculo histórico”. O trecho determina que os militares destinam-se “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
“Seria preciso reescrever esse artigo para fazer um gesto simbólico. Porque a proeminência do poder civil é sempre um predomínio simbólico”, defende Fico. “Depois do fim da ditadura, quando chegamos à Constituinte de 1988, vários deputados tentaram eliminar essa atribuição excessiva de poder aos militares e não conseguiram.”
A interpretação de que a legislação garante às Forças Armadas “papel de árbitro”, no entanto, é equivocada, na avaliação do historiador.
Os militares entenderam que a Constituição Republicana definia para eles esse papel de árbitro. Não atribuía, mas eles interpretaram assim
Carlos Fico
A CNN procurou o Exército para comentar as análises de Fico, mas não teve retorno até o momento.
O STF, inclusive, analisa ação do Partido Democrático Trabalhista (PDT) que pede esclarecimentos sobre os limites para a atuação das Forças Armadas. O ministro Luiz Fux foi o único a votar até o momento e afirmou que a Constituição não permite intervenção militar.
Confira os principais trechos da entrevista da CNN com Carlos Fico:
Qual é a diferença entre o que ocorreu 60 anos atrás e o 8 de janeiro?
A gente tem a tradição do intervencionismo militar, mas a diferença é a adesão dos chefes militares. No caso de 1964, houve uma conspiração muito intensa que envolveu muitos oficiais generais. E tinham armas, que é o decisivo para você derrubar um presidente da República.
No caso do 8 de janeiro, nós não sabemos ainda exatamente o que houve — nem nós, nem ninguém, nem a Justiça sabe.
O que parece ter havido foi uma espécie de mobilização de pessoas desinformadas na expectativa de que contavam com apoio de oficiais generais e oficiais superiores, quando efetivamente não contavam.
Diante do 8 de janeiro, há possibilidade de sofrermos um novo golpe?
Acho que não exatamente há um risco de um golpe iminente, mas a possibilidade de intervencionismo militar sempre houve, continua havendo e continuará a haver.
O Exército renovou a ideologia de suas novas gerações após a ditadura?
As Forças Armadas Brasileiras têm uma tradição golpista e de intervencionismo militar na vida civil desde sempre. E essa percepção específica em relação ao suposto papel que elas teriam de Poder Moderador sempre existiu e continua existindo até hoje.
Desse ponto de vista mais geral, do intervencionismo militar, eles sempre se entenderam com o direito de intervir por conta dessa interpretação equivocada das Constituições brasileiras.
Diante do 8 de janeiro, como fica a imagem das Forças Armadas para a sociedade?
A imagem está piorando cada vez mais. Tem pesquisas recentes que mostram isso. Justamente por essa causa lamentável.
Piorou inclusive entre aquelas pessoas que outrora as apoiavam na expectativa de um golpe. Frustrados por não ter havido um golpe, se desencantaram com os militares. Então é o pior cenário possível.
E realmente, no passado, os militares, as Forças Armadas, tinham uma imagem bem positiva, acima de diversas instituições. E isso vem caindo ao longo dos anos, e agora deu uma queda acentuada.
Qual é o impacto da ditadura no Brasil e como o senhor avalia a maneira com a qual o país lidou com o fim do regime ditatorial?
O golpe de 1964 e a ditadura militar que se seguiu se inserem em uma tradição muito antiga, desde o final do século 19, de intervenção dos militares na política, que é uma coisa indevida e que fragiliza a democracia brasileira.
Então, um dos traços mais marcantes da fragilidade institucional da democracia brasileira é justamente a falta de proeminência do poder civil, porque os militares, quando querem, interferem indevidamente na política rompendo, portanto, a legalidade constitucional.
Essa é uma tradição da história política brasileira que a gente supunha estivesse encerrada quando acabou a ditadura militar. E me lembro até que eu falava: ‘olha, isso não está superado’.
Nesse caso até acho que, infelizmente, eu tinha razão. Esse é um problema que não se resolveu por uma série de razões e nós vamos continuar enfrentando.
Comparando a memória da ditadura no Brasil e em outros países que vivenciaram regimes similares, como o senhor avalia manifestações no nosso país que pediam interferência militar?
Boa parte da sociedade brasileira é muito conservadora ou mesmo de direita, tanto que elegeu o [Jair] Bolsonaro. Boa parte da sociedade brasileira é extremamente violenta e racista, entre outras características igualmente negativas. Então, não surpreende a adesão dessa parte da sociedade a valores autoritários, por exemplo, racistas, homofóbicos, violentos.
Além disso, houve duas coisas na ditadura militar brasileira que não houve em outras.
- A primeira é a censura. A visibilidade da violência contra quem se pronunciava em oposição da ditadura era praticamente nula.
- A segunda característica é a propaganda política. A propaganda política da ditadura foi muito eficaz e mostrava coisas maravilhosas na televisão.
As pessoas, portanto, não tinham notícia da repressão e viam um mundo maravilhoso e colorido de promessas e obras, e de, digamos, perspectiva de um Brasil do futuro, do Brasil potência, na televisão.
Esses são dois motivos pelos quais se constituiu, em muitos setores, não em todos, uma memória benevolente sobre ditadura.